sábado, 5 de dezembro de 2009

Alteridade: eu e o outro








Assim como o homem é capaz de cometer barbáries inacreditáveis, algumas até inauditas, também pode ter atos de imensa nobreza, de esquecimento de si, de pura alteridade. Aung San Suu Kyi, representante da esquerda birmanesa, na década de 80, quando impedida pelo exército de participar de uma reunião, não vacilou. Dirigiu-se lentamente para a frente de todos os rifles, então o capitão ordenou “Fogo”, entretanto os soldados ficaram imobilizados diante daquele símbolo vivo de luta. Seu superior gritou novamente com mais potência e louca ira “Eu disse FOGO!” Mesmo assim nenhum deles teve coragem de atirar, eram dezenas de rifles apontados, porém nem sequer uma bala fora lançada e Aung San atravessou a barreira de armas e homens hipnotizados pela sua força. Neste momento ela tornara-se grande porque lutava não por si, mas pelo outro, um “rosto” que nem mesmo conhecia, pois era a humanidade.
Nos idos anos 60, um casal, Neusa e Simões, cedeu seu sítio para um encontro de jovens da UNE. Descobertos, foram presos, juntamente com duas filhas pequenas. Sofreram constantes sessões de tortura e humilhações. Uma noite, as meninas, separadas de sua mãe, choravam muito, pois ouviam os gritos estridentes do pai, então o capitão que torturava Simões ordenou que ela as fizesse parar ou a violaria com o cacetete diante crianças.
Dessas terríveis reminiscências, ela traz uma que lhe causa comoção.
Em frente a sua cela estava um rapaz muito ferido, com a barriga aberta, pois havia sido baleado, entretanto mesmo assim os militares o torturavam monstruosamente. Ele, contudo, após as torturas, ao invés de mergulhar em suas próprias dores, remoer as suas feridas, dirigiu-se até as grades e demonstrou uma imensa preocupação com ela e as meninas, queria saber se os guardas haviam lhes feito algo,claramente sentia-se mais atingido, afetado pela situação delas do que pela sua. Um homem que experimentando os maiores tormentos físicos e morais, mesmo assim conseguiu ocupar-se menos de si e ver a perspectiva do outro. Seu nome: Fernando Gabeira.
Atos assim de alteridade fazem com que o homem saia de seu eixo, deixe o seu ego, tire o foco do seu eu, de seu centro e veja-se no outro, sinta-se ele , compartilhe, doe. Atos puros de alteridade o transpõem acima de sua pequenez e fronteiras, e tem o poder de cobri-lo com o véu de uma dignidade maior e mais humana que enternece até as pedras.

Claudia Carla Martins


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